quinta-feira, 24 de maio de 2012

O sentimento sem nome

O que chamam de amor é um grupo infinito de sentimentos incompreensíveis, que formam um conjunto batizado por essa palavra. São como fibras de um cabo de luz ótica, visto depois de um corte. Você olha o perfil e vê uma série de pontinhos, cada um fazendo parte de uma fibra. Como são intensas e vivem unidas, confundem os conceitos. É costume chamar, indiscriminadamente, de amor uma série de sensações, unhas cravadas no coração indefeso, ou apenas rios de lava que percorrem o corpo, uns de maneira mais tépida, outros abrindo caminho com fúria. É impossível separar cada fibra do feixe todo, por isso há tanta má vontade, na prática diária, em relação ao amor. Ou se abandona o sentimento (aquela fibra sem nome, que faz parte do conjunto, mas não é o amor, condomínio poderoso de inúmeras habitações) ou se convive muito mal com ele. Como posso saber dessas coisas? Sei lá, às vezes a lua cheia está plena de recados.
PRESENÇA – Ao acordar, existe uma sensação. Pode ser arrependimento, ou simplesmente continuação de um sonho. Estás só, mesmo que haja presença alheia. É contigo o embate: alguém plantou dentro de ti uma fibra ótica que cruza, como um neutrino (partícula que existe, mas não deixa marcas) teu corpo todo e te faz tropeçar no piso encerado (ou no chinelo, mas esta é uma palavra pouco apropriada quando se fala dessas coisas). Basta conhecer alguém e uma outra fibra não te abandona. Como podes se nem conviveste com aquela vida? É apenas um fisgar. Quando te revoltas com alguém pedindo comida num país que exporta proteína, desabafas para alguém desconhecido, teu coração está cheio de revolta e calor. O momento passa e ninguém lembra de mais nada. Volta para ti um cheiro, uma lembrança, uma cena, e lá está, plantada como um salso chorão (aquela árvore que se derrama em folhas e galhos sobre o chão), como um tornado invisível, a parte do feixe que deixaste de lado como um lixo industrial. Vais até o quintal da tua vida e vês, atirado, enrodilhados como cobras mortas, o conjunto de brilhos agora foscos, que deixaste de lado.
ESPELHO – A vida é um eterno assassinato dos sentimentos sem nome. Como não podem ser identificados, não há batismo. Chamamos de paixão, amor, empatia, todas as palavras, mas não se trata disso. É algo completamente desconhecido. É território inexplorado, que fazem a riqueza da psiquiatria. Não se trata de batizar, mas de identificar como algo próprio, que faz parte de um conjunto maior. É mais do que a arqueologia do coração e da mente, é trabalhar com um universo desconhecido, que está dentro de nós, mas estamos ocupados com outras coisas. Como há completo desconhecimento, os livros de auto-ajuda fazem a festa. As pessoas correm para as livrarias para tentar entender alguma coisa, mas existem apenas palavras. O sentimento sem nome (um olhar, uma esperança) está fora delas e continuas no terreno baldio da tua história. Então, se instala o hábito. Ou as pessoas se rendem aos argumentos falsos dos autores que nada entendem do incognoscível, ou continuam à parte de tudo. Aos poucos, tua cara toma a forma de uma máscara de horror.
MURO – Pois é preciso estar protegido contra qualquer tipo de sentimento. Tens mais o que fazer. Precisas sobreviver, fazer os outros se enxergarem, ordenar, contrapor, vencer. Para que serve isso que está agonizando como uma cobra de luz dentro do balde de tua indiferença? Serve para serem depositados em animais de estimação, em viagens inúteis, em poses estudadas. Serve para o vazio, enquanto sonhas com o amor tornado impossível, pois se não consegues entender uma só fibra do conjunto, como poderá lidar com uma cidade, uma nação, uma estrela inteira de grandezas infinitas? Idealizas o grande amor enquanto perdes o contato com que o tenta se salvar dentro de ti. Basta saber que isso existe, que não tem nem terá batismo, e acolhas em tua casa como um viajante sem pouso. Dê-lhe comida e água e um teto, para que possa ficar, ou parta um dia sem remorso. Serás assim a hospedagem de sentimentos desconhecidos, mas reais, e serás visto como alguém que sabe honrar o compromisso maior com a vida: a de existir para que todos possam encontrar seu destino e conseguir chegar ao portal divino com um feixe de fibras que se retorcem.
PERFUME – Será teu presente ao Deus que te aguarda, essa ramo de flores ainda incógnitas, mas vibrantes. O Paraíso precisa desse gesto, para que haja perfume na morada eterna e algo mais do que lágrimas na terra em conflito.

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