quinta-feira, 31 de maio de 2012

O primeiro roqueiro português


camoes
A cena me é clara: A brisa do mar entra comendo os ferros da taberna, um homem se debruça na mesa de madeira de lei, bebendo cachaça ou o diabo que o faça lembrar das arruaças em lisboenses. A juventude foi certamente um ponto de partida para sua pena, ainda pena ali, uma ode ao que viria a ser o seu legado, mas agora era sua a profunda e profusa miséria: Seus cantos e seu amor, carregado de cinismos e lucidez crônicos, pela pátria ou pelas putas ou por Dinamene, tudo gasto e agora sorvido na pinga ruim que lhe descia pela garganta. O soldo de soldado viajante lhe pagava mal o destilado. O que lhe restavam era a memória e o devaneio.
O homem é velho, capenga, cego d’um olho, de triste figura.
O homem é a sina pura de um roquenrôu ainda não nascido. Antes de Swift, Byron, Sartre, Camus. Antes de Bukowski, Ginsberg, Chuck Berry e Keith Richards, existiu Camões, sim, existiu o trovador maior português.
A iconoclastia de inventar um novo português, mais fluído e menos burocrático, a maestria de se rebelar, pobre e culto, com badernas e troças, a aventura pelas Índias distantes e os tours pelo mundo ocidental, África-China-Europa, ali o bardo era a proposta inicial do que os anos 50 vieram a experimentar: A profunda subversão.
O copo ainda está lá, a mesa, a cadeira, a areia. Ele expira fundo a maresia do Caiscais, em seu bar mais podre. Mesmo avariado pelos anos, tem suas mulheres, que lhe vêm à cabeça. Todas nuas pelo seu texto, amores tais, imensos e passageiros, por talvez groupies tão loucas como as que acompanhariam o Led Zeppelin. A China opiosa, antes de Jim Morrison, está presente. As experiências de percepção alterada, o álcool, a tinta, o papel, mais difusos que os do rei lagarto dos Doors, por ali Camões versava valorosos homens saindo ao mar, cínico do que viria depois, conhecedor de seu governo desenfreado, mas dentro das rédeas, fez dum símbolo nacional a mostra do presságio de seu reino mal administrado no futuro: Os Lusíadas tem sim sua carga imensa de sarcasmo, não é somente a épica pura e simples. Sabia disso, ria-se disso.
O homem descança a cabeça na mesa, viaja no tempo.
Agora, em sonho ou por aqui nesse texto, um momento de embriaguez o traz a você, nesses quase 500 anos futuros.
Ele lhe oferece um cado do seu copo, senta e escuta o som estéreo dos Rolling Stones. Alegre, pede em troca do que resta em seu copo apenas para lê-lo nos seus versos de amor e não esquecê-lo. Ele sabe que não há mais naus para você, ou índias para descobrir como as que ele descobriu, por isso pede apenas ouça, se quiser, Monte Castelo, cosido a um texto bíblico habilmente por Renato Russo como tributo. Sim, esse Camões conhece a música. Você canta, ele canta junto o fogo que arde sem doer, você toma um pouco do copo. Feliz ele volta, se levanta e vai morrer em sua cama ao lado da igreja.
E o último show dele foi ao lado seu leitor, que agora sabe do primeiro roqueiro português.

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