Há dias que tenho tirado os óculos e esfregado os olhos, não como quem não acreditasse no que está vendo, mas sobretudo, no que está lendo. Aos que compartilharam esta palhaçada, não sei vocês, mas não costumo dar risadas quando sou eu a piada. Envergonho-me de ter que dividir o palco desta existência com personagens que vestem a fantasia de um palhaço de circo para tratar um dependente químico como escória social, um marginal, um bandido. E isto não é uma teoria, é antes, uma estatística. Pensando nisto, apiedei-me da ignorância alheia e decidi tecer um breve esclarecimento acerca da medida encontrada pelo Governo do Estado de São Paulo para tratamento de pessoas com dependência química. O programa atende pelo nome de Cartão Recomeço e como já asseverado, foi inspirado no programa mineiro chamado Aliança pela Vida e não Bolsa Crack como capciosamente o substantivaram. O Cartão Recomeço foi implantado para possibilitar às famílias de baixa renda o tratamento dos dependentes mediante o credenciamento de clínicas habilitadas a recebê-los. Levem os olhos para passear pelas respectivas páginas da Organização Mundial de Saúde, está regulamentado: a dependência química é uma doença. Agora consultem a consciência e, de preferência, vá até a Cracolândia para onde estes farrapos automatizados são arrebatados por força irrepreensível e sobrenatural do vício. Amarelos, fulmíneos, cadavéricos, fétidos. Pó do caminho: é a isto que estão reduzidos. Estamos falando de pessoas que perderam a sua condição humana, foram devolvidas ao plano seminal, com a diferença de que, para estes seres fragmentados, em corpo, mente e espírito, ante o comportamento abortivo e o descaso de uma sociedade que cresce a olhos vistos, o retorno já não me parece possível. A primeira faculdade que perde um viciado é o rastro dos próprios passos. De olhares judiciosos já bastam os fóruns. Ser um viciado não é uma opção, mas uma fuga mascarada que cresce à sombra de desgraças cujas forças fraquejaram para superá-las e, por mais que sejamos levados a concluir pelo contrário, há males que escapam e muito a nossa compreensão. Ninguém suspeita dos buracos que outro tem na alma. Tratam logo de não chegar perto para não correr o risco de caírem lá dentro. É prudente que a sociedade os trate como o ET azul portador de alguma doença infectocontagiosa. É a única explicação encontrada para que ela os isole desta forma. Ao invés de olhar para esta legião de mortos-vivos condenada a vagar pelos becos soturnos do absurdo, nossos semelhantes estão ocupados demais com a pá da mediocridade, cavando covas para que estes dependentes químicos possam, decerto, ter onde abrigar ossos de sonhos mortos. Os doentes aqui não são eles, somos nós — Sociedade — que compartilhamos este tipo de imagem. Não tenho a cura para que triunfemos sobre o Crack, mas a indiferença é, certamente, a primeira opção para que fracassemos miseravelmente. E para cada tiro, facada ou qualquer outra arma — seja ela uma palavra afiada que proferimos na depreciação destes indivíduos, somos também responsáveis por sepultar ainda viva, a esperança de salvação de cada criança, adolescente, adulto ou idoso, já que o Crack não escolhe idade. Isto sim deve ser motivo de luto, pois, o fazendo, enterramos o nosso respeito pelo próximo. E não me venham falar em sociedade de bem, isto é estupidez. Abaixo o pseudomoralismo das classes, porque ricos ou pobres, todos temos um compromisso semelhante: uma epidemia de proporções bíblicas que precisa ser combatida. E o que é mais preocupante, testemunhar o comportamento de pessoas que, por mergulharem neste oceano de insensibilidade, estão em um estágio profundo de experiência inconsciente, já que estes discursos horrendos só depõem contra eles mesmos, e não tem outro fim senão o de dispersar os remos desta minoria que ainda acredita na possibilidade de evitar o naufrágio de outras vidas. Só quem conhece a situação de um dependente químico pode mensurar o quanto ele está doente, padecendo todos os que convivem com ele, pessoas que, comprovadamente, tiveram a alma expulsa do corpo para que o Crack a ocupasse. Absurdo é não instarmos as autoridades a se pronunciarem pelo gesto irresponsável de infidelidade governamental à Lei Fundamental, ante o descumprimento inconsequente das promessas ventiladas na Carta Magna, frustrando a legítima expectativa da população ao acesso à saúde. E, quando finalmente alguém se dispõe a implementar uma política de recuperação para estes viciados, os pais, os filhos e os espíritos involuídos da Santa Ignorância andam na contramão da evolução. Isto sim é palhaçada. Que esta cotovelada do Governo do Estado de São Paulo possa abrir caminho dentro da multidão, e que este grito de solidariedade que encarna as milhares de vozes anônimas das famílias que sofrem com este mal, possa ser ouvido em alto e bom tom, fortalecendo a ação do homem que está na luta para transformar esta realidade, devolvendo-nos o ideal de um Estado Democrático não só de direito, mas também de fato. Agora saia da frente Sociedade. Deixe passar um homem sensato. É a triste irrealidade. Quem disse que a vida era um romance, não fazia ideia do que era ser um personagem.
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